quarta-feira, 9 de maio de 2007

excerto de "glory box"

"...Perto da porta, tombo o corpo para a frente, encosto o mais discreto ouvido à porta que agora não range mais, que agora se limita a separar-me da besta que do outro lado, ainda com cheiro ao mais fumarento vício, espera. Faço então o esforço por não te ouvir respirar e concentro-me na brecha da porta, pela qual te vejo em tom de mágoa afogado. Ouço-te murmurar como uma criança cumprindo seu castigo, vejo-te comprimir toda a face numa expressão de nojo, de choro. Palavras que não me chegam para gritar de espanto por ver que bestas como tu choram, que também elas soltam o húmido gelar de uma alma.
E é o prazer que me percorre as veias a velocidade estonteantes, por ver agora que no nosso retrato, a tua silhueta é tão medíocre quanto a minha, por ver que estamos ambos em mundos que não criámos, que choram por ver que a estaca zero nos serviu de lar. Até à luz, seremos assim, até morrer terei esta imagem de nós, a de uma igualdade medíocre, sabendo que estive tão perto de te tocar, de passar os finos dedos pela tua cara para te dizer que, por mais que a morte te sirva de desculpa, temos ambos a pele nua à exposição da luz impura, à luz suja do mundo, da mesma forma, sem que sejamos os heróis imortais dos nossos rasgados planos. ..."
INSOMNIA

3 comentários:

Anónimo disse...

Bonito...e bastante verdade suponho

Tangerina disse...

cruzei já estas linhas de outra vez... gostei mais agora ... de longe.

Anónimo disse...

( já conhecia a música , mas nunca tinha visto o vídeo . está engraçado , principalmente na(s) velocidade(s) utilizadas e nas sombras )
esse texto está qualquer coisa do outro mundo . a primeira vez que o li passou-me completamente ao lado as inúmeras mensagens que são descritas , são tantas , céus ! em cada coisinha há pormenores por descobrir . é um excelente excerto , com uma enorme virtude : por mais que se leia não nos cansamos , não só pela diversidade de vocabulário mas também pela quantidade de coisas que nos transmite e nas quais nos conseguimos identificar .

" ... a tua silhueta é tão medíocre quanto a minha, por ver que estamos ambos em mundos que não criámos, que choram por ver que a estaca zero nos serviu de lar. " estas palavras , o excerto todo , é uma dádiva , mesmo .


"glory box", estás a fazer um livro (uma história ou uma reunião de textos soltos , sei lá , tanta coisa) ? :)