terça-feira, 29 de abril de 2008

m

Se ao menos pudéssemos chorar de novo e limpar as lágrimas menos nossas, os nossos braços dar-se-iam para nunca largar. Mas não se chora assim. O choro é o peso que um abraço de adeus deixa em nós. O choro é um gesto que se esconde numa saudade qualquer, para não mostrarmos do que somos feitos afinal.

Prospero em pontas de pés para te tocar na ponta dos cabelos à noite pardos. “Faltou-nos tudo para ter tudo a perder.”, inventei. Fomos o triz, um amor, o quase, um retrato romântico fantasiado, para o qual olhámos sem nos vermos, traçado na cor do meu desdém.

Não sei amar mais, meu amor. Deixei o tempo tomar conta dos passos fundos no trilho de terra, 

e perdi-me à ida. 

Deixei esquecer que te amo e que não se ama assim, 

a cinzento-escuro. 

(num bloqueio criativo)

domingo, 27 de abril de 2008

Creep

Não cheiro mais a cor do chocolate nem me divirto com caixinhas misteriosas. Tranquei todos os meus baús negros a sete chaves. As mesmas que engoli quando deixei de ver as mil cores da vida e saborear a sua textura irregular.
Desde que desisti de seguir os carris que me levavam a ti, que joguei fora as pedras recolhidas em troços sagrados deixei de ouvir a nossa voz, o nosso choro, o nosso riso.
O abraço perdeu a força e o beijo perdeu-se em tamanho labirinto, tal como eu...





Fui, não sou mais...

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Goldie


"Goldie, she said her name was Goldie."

Provei-te. Era meu desejo maior provar o teu vermelho sabor e teu cheiro dourado.
Foste fácil. E que bem soube essa facilidade extrema de te poder tocar, beijar, ter a mais louca madrugada da minha vida.
Não receaste o meu corpo marcado pelas garras da experiência, maldita. Não temeste a marca dos carris cravada em minhas mãos que tocavam a tua deliciosa pele.
Estremeci quando me murmuraste promessas eternas e acreditei, como um tolo, nelas para nunca.
Foi o êxtase de uma chuva de cometas vislumbrada num descampado cor do sol, como os teus caracóis. Foi o delírio de mil cores, formas e feitios, do rodopiar de folhas verdes numa estrondosa tempestade de Verão.
Paguei-te e foste embora, com todo o teu brilho de estrela apagada.

sábado, 19 de abril de 2008

paranóias


A saudade aprende-se, faz parte de nós aprendê-la. Deixá-la correr os pontos feios do corpo mal esculpido, é uma arte que devagar se vence. Eu sei sorrir num gesto feio, mas nos teus olhos não me vejo, e não sorrio. Sabe a sal esse cabelo negro, esse timbre insonso preto escarlate, esses lábios mal maquilhados pela chuva desperta.

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Chamo-me nuvem, se num poema pequeno. Tenho o sabor de uma avelã arrancada da raiz de um sabor satisfeito. E sou o que quiseres, porque me inventei assim. Dou-te a mão fechada e dou por mim a ver-te procurar-me dentro do meu gesto. Mas não me encontras. O meu corpo tem um preço que só a ouro se vende. Sou a puta da loucura, meu amor. 

E nunca, nunca aqui estive. 
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terça-feira, 15 de abril de 2008

24 T

Não fico por aqui. Rio em jogos de espelhos para não te responder, para não ver na tua cara o que imagino querer ver na ponta do meu sorriso. Falo-te de amor e respondes à letra com olhares bonitos, tudo-menos-inocentes. Deixas que fale sozinho para me deixar de querer ouvir, para me fartar da voz que carrego fúnebre sobre o pescoço desengonçado. Não me pedes nada, não dás nada de ti senão mãos vazias e punhos fechados. Invento caligrafias novas para mudar a escrita somente. As palavras hão de ser sempre iguais às que fiz por inventar sem querer. Há que mudar o corpo quando a alma é pouco para dizer de mim ao mundo que vim para ficar. Há que voltar a sorrir devagar, de olhos postos em nuvens que se prostituem por um lugar no céu. Há que amar depressa e ver que o amor foi culpa minha, que ainda vai a tempo o amar de outra forma. Há que ficar, há que nunca partir rumo a mais. Isto é casa. Isto tem de chegar.

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é a história que ninguém conta,

de que ninguém abre mão:

 amores não são círculos fechados.



quarta-feira, 9 de abril de 2008

O Voo da borboleta da noite


Tinha o brilho celeste marcado nas asas, tais telas pintadas com as cores de um preto difuso e quebrado nas mil cores do arco-íris. Gostava de vestir a melhor Primavera e de tomar balanço nos ventos de tinta verde. Ela servia-se do pecado proibido para matar a gula de carne, para voltar ao toque feminino de um beijo escasso que há muito não deixava reter nos lábios. Colhia no verde da paisagem a sede que lhe devia restar da noite posta. A noite haveria de vir por aí adentro para lembrar à borboleta que é proibido sonhar alto nas aragens deste verde-claro, para a puxar para os voos baixos, mais perto das ternas presas. A noite era para deixar a metamorfose soar entre as montanhas. Vestir a Natureza e levar o toque atrás, levar o sentir, o esperar, o crescer de pequenas papoilas onde ninguém as descobre senão nós: plano mestre da borboleta menina. O de deixar o mundo lembrá-la pelos voos picados, deslizando por mil flores choramingas, a levar para uma o que guardava na pele da anterior. Prometeu às rosas escarlates guardar para sempre nas asas uma nova cor, por cada novo amor. Prometeu carregar consigo para sempre a mancha encarnada, para lembrar o amor que  arrancou da pele de tantas outras almas, de tantas outras cores e tantas outras lágrimas. Prometeu guardar almas como quem guarda segredos em caixas para não abrir nunca. Prometeu morrer antes de contar à noite que tem medo de carregar o branco nas asas. Que tem medo do regresso a casa, de olhar no seu próprio reflexo, de ver a sua verdade pintada num quadro triste.

            Ia calcando no ar esses caminhos de pedra irregular, noite cerrada, expectante. Apesar disso pairava no ar um calor agradável de meados de verão. Ao virar de uma esquina, por um beco adentro aparece uma borboleta, primeiro plano debaixo dos candeeiros, protagonista da noite e realizadora do seu destino. A borboleta assim banhada por aquela luz, aparecia de beleza requintada tão pura como a lua, que se escondia nessa noite. Entusiasmado seguiu a borboleta adentro o escuro, para longe dos candeeiros. Seguiu-a já por ruas que não tinham nome, voou céus que nunca tinha pisado, sentiu o vento como nunca tinha sentido. E de noite chegou-se a si, viu para dentro, sem contar a ninguém, que era uma mulher. Que não voava mais que ninguém, que tinha medo de voar demasiado alto, que não era gente.

E perdeu a outra borboleta, para um dos lados da rosa-dos-ventos que girava desnorteada de tanto vento.

E só tarde se olhou livre nas grilhetas e presa no fingir humano. Sabia agora voar e já não era preciso, fingir bastava, a partir de agora e para sempre.

(mais um texto com a (espectacular) participação de Ricardo Cabrita)