quarta-feira, 9 de abril de 2008

O Voo da borboleta da noite


Tinha o brilho celeste marcado nas asas, tais telas pintadas com as cores de um preto difuso e quebrado nas mil cores do arco-íris. Gostava de vestir a melhor Primavera e de tomar balanço nos ventos de tinta verde. Ela servia-se do pecado proibido para matar a gula de carne, para voltar ao toque feminino de um beijo escasso que há muito não deixava reter nos lábios. Colhia no verde da paisagem a sede que lhe devia restar da noite posta. A noite haveria de vir por aí adentro para lembrar à borboleta que é proibido sonhar alto nas aragens deste verde-claro, para a puxar para os voos baixos, mais perto das ternas presas. A noite era para deixar a metamorfose soar entre as montanhas. Vestir a Natureza e levar o toque atrás, levar o sentir, o esperar, o crescer de pequenas papoilas onde ninguém as descobre senão nós: plano mestre da borboleta menina. O de deixar o mundo lembrá-la pelos voos picados, deslizando por mil flores choramingas, a levar para uma o que guardava na pele da anterior. Prometeu às rosas escarlates guardar para sempre nas asas uma nova cor, por cada novo amor. Prometeu carregar consigo para sempre a mancha encarnada, para lembrar o amor que  arrancou da pele de tantas outras almas, de tantas outras cores e tantas outras lágrimas. Prometeu guardar almas como quem guarda segredos em caixas para não abrir nunca. Prometeu morrer antes de contar à noite que tem medo de carregar o branco nas asas. Que tem medo do regresso a casa, de olhar no seu próprio reflexo, de ver a sua verdade pintada num quadro triste.

            Ia calcando no ar esses caminhos de pedra irregular, noite cerrada, expectante. Apesar disso pairava no ar um calor agradável de meados de verão. Ao virar de uma esquina, por um beco adentro aparece uma borboleta, primeiro plano debaixo dos candeeiros, protagonista da noite e realizadora do seu destino. A borboleta assim banhada por aquela luz, aparecia de beleza requintada tão pura como a lua, que se escondia nessa noite. Entusiasmado seguiu a borboleta adentro o escuro, para longe dos candeeiros. Seguiu-a já por ruas que não tinham nome, voou céus que nunca tinha pisado, sentiu o vento como nunca tinha sentido. E de noite chegou-se a si, viu para dentro, sem contar a ninguém, que era uma mulher. Que não voava mais que ninguém, que tinha medo de voar demasiado alto, que não era gente.

E perdeu a outra borboleta, para um dos lados da rosa-dos-ventos que girava desnorteada de tanto vento.

E só tarde se olhou livre nas grilhetas e presa no fingir humano. Sabia agora voar e já não era preciso, fingir bastava, a partir de agora e para sempre.

(mais um texto com a (espectacular) participação de Ricardo Cabrita)

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