sábado, 30 de junho de 2007

Este sótão


Vagueias por este poeirento sótão arrastando as tuas vestes negras. Geras a confusão, desarrumas a quietude e absorves tudo em teu redor. Absorves-me. Fazes com que tudo cheire a ti. Esse teu intenso perfume a chocolate negro, ao puro cacau, aquele amargo sabor viciante que se derrete tão intensamente nos meus lábios. Remexes em minhas memórias, guardadas em caixas já pálidas. Tira-las para fora e fazes delas o meu presente, tu, meu fantasma, és o meu presente. Aceita seres apenas uma eterna recordação. Ainda ninguém te conseguiu arrancar de mim, mesmo depois daquela bússola desorientada. Nem a forte ventania me segredou tão belas baladas, nem ela soprou mais forte que tu. Quando me apercebo da tua presença constante em mim imploro-te viagens. Suplico que me leves para lá da noite, sabendo que és incapaz de tal. Mantenho a rídicula ilusão de que me pertences por ainda deambulares em mim, mas caio e ordeno-te que saias, que deixes o meu recanto em paz . Mostras-te imune aos meus desesperados gritos e eu desisto. Desisto de mim como um só quando a vejo entrar, com vestes brancas contrastando, lenta e confiante. Esboça um sorriso cínico e provocante e pega-te para dançar ao som de uma música frenética. Imploro-vos que parem mas estão tão concentrados na sincronia de passos e na troca de olhares que não ouvem o acordar do meu monstro. Num gesto de fúria tento metê-la numa caixa cinzenta, cor do nada, e tu, impávido observas a luta entre dois corpos obstinados. Ela é claramente mais forte e num golpe certeiro me deita ao chão e ri-se, na minha cara, da minha triste e apaixonada figura. Permaneço quieta, estendida e deixo-vos, juntos, a desarrumar todo o meu sótão, a torná-lo confuso, tendo sempre a certeza em que caixa vos vou guardar quando recuperar. Aí, não passarão de memórias, de meros fantasmas.
[Fotografia: Olhares; escolhida por Carlos Silveira.]

3 comentários:

Anónimo disse...

Penso que já sabes o quanto gostei do texto, ou se calhar não, é forte o desejo de transcrever para aqui uma frase k me tenha marcado, mas não dá, acabaria por ter de transcrever o texto todo e disso não há necessidade, tudo o que posso dizer, e que se este texto fosse uma onda, não haveriam baixos nem medios, só altos...uma vez disseste " as pessoas nunca se lembram dos pontos medios, so dos altos e dos baixos" agora lembreime, referi-os apesar de dizer k aqui n existem ;)

Fica bem minha

volcano disse...

Interpretei o texto de uma maneira, até posso estar errado, não sei.

Eles já são fantasmas, e por isso ignora-los é a melhor coisa que tens a fazer.

Gostei *

Gui

Anónimo disse...

Muito bom, vocabulario muito extenso. (Isto de estar uns dias fora muda tudo!)
Sótão. Este Sótão. Gosto imenso do título. Todos temos um ou dois, não é verdade? Carregado de baús, carregados de fantasmas. Enfim!